segunda-feira, 17 de maio de 2010

Lula, Irã, a fome e a paz (Beto Almeida - Carta Maior)




No curto espaço de uma semana, o Brasil viu-se como protagonista em duas questões centrais para a humanidade. Primeiramente quando Lula é condecorado pela ONU com a medalha pelos esforços no combate à fome, fato que a mídia comercial escondeu, para espanto geral. Segundo porque neste final de semana o presidente do Brasil, após conseguir o apoio da Rússia para suas gestões, desembarca em um Irã ameaçado levando uma mensagem clara ao mundo: os problemas devem ser resolvidos pelo diálogo não por sanções, muito menos pela guerra, que, comprovadamente, veja-se hoje o Iraque e o Afeganistão, só trazem solução para o caixa da indústria bélica, a principal economia dos EUA. O artigo é de Beto Almeida.

Beto Almeida

Essas são duas iniciativas repletas de simbolismos, a começar pelo fato de não virem das grandes potências hoje ações concretas para enfrentar a fome e alcançar a paz. Ao contrário, vem do menino que sentiu no corpo a dor da fome e carrega consigo uma mistura de teimosia santa de Dona Lindu com a dialética do retirante.

É muito difícil fazer prognósticos sobre as possibilidades de sucesso para uma empreitada do porte desta que Lula carrega em nome do povo brasileiro, amante da paz. Querer o diálogo e a paz quando o que dá lucro é a guerra, aparentemente seria como nadar contra a corrente. Ramificações industriais complexas e lucrativas estão funcionando inteiramente e a todo vapor para sustentar presença militar estadunidense pelo mundo. A mensagem brasileira põe em cheque este poderio e sua maneira de dominar a política internacional, de impor sanções que terminam comprovando-se mecanismos que ampliam as tensões e desembocam em conflitos bélicos. Os orçamentos militares ampliam-se, sobretudo o dos EUA, que , isoladamente, supera em volume de recursos a soma dos orçamentos militares de todos os países do mundo.

As similaridades entre Brasil e Irã nesta questão nuclear, grosso modo, devem ser olhadas com muita atenção. Em 1987, o presidente José Sarney anunciou ao mundo que o Brasil havia alcançado o estágio do domínio tecnológico completo para o enriquecimento do urânio. O anúncio foi acompanhado da solene declaração de que a conquista tecnológica se destinava exclusivamente a finalidades pacíficas. Para chegar a esta conquista o Brasil percorreu um longo caminho desde o início do Programa Nuclear Brasileiro, iniciado na Era Vargas e conduzido pelo Almirante Álvaro Alberto, que não pode ser esquecido nos debates atuais. E recebeu pressões pelo desejo de sua independência tecnológica. Ao ponto de que turbinas atômicas compradas da Alemanha terem sido seqüestradas por dispositivos militares da OTAN, em 1952, no Porto de Hamburgo, antes de serem embarcadas para o Brasil. Nova pressão imperial veio quando o governo Geisel firmou o Acordo Nuclear com a Alemanha. O recado era claro, bastando para isto lembrar declaração de Henry Kissenger, então secretário de estado dos EUA: “Não permitiremos o surgimento de um novo Japão abaixo da linha do Equador”.

O Irã sofre hoje pressões pelas quais o Brasil já passou. Muito embora atenuadas, aparentemente, quando o governo FHC, erroneamente em em costumeira posição de vassalagem diante do império, assinou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, dispositivo que não é cumprido à risca praticamente por ninguém. Os que são armados continuam super-armados - e armando-se com novas tecnologias - e os desarmados que se contentem com a ilusão de que não correm os riscos de transformarem-se em torresmo. Claro, desde que renunciem para todo o sempre a qualquer pretensão de desenvolvimento tecnológico nesta área. Mesmo que para finalidades exclusivamente pacíficas, o que não é respeitado por algumas das grandes potências que querem ditar as regras para os outros, mas não para si.

Mídia vassala
Tanto quando do anúncio da conquista tecnológica nuclear brasileira, em 1987, como agora, a grande mídia internacional, controlada pelos anunciantes enraizados em algum ramo da indústria bélica - como também a mídia comercial nativa - revela sua desconfiança editorial. O resumo da ópera é que o Brasil, o Irã e outros emergentes, não devem sequer pretender soberania tecnológica. E que o mundo fique como está.

Curiosamente, nesta semana que antecedeu a visita de Lula ao Irã tambem foram divulgadas matérias propositalmente descontextualizadas condenando o Brasil por vender armamentos para regiões de conflito. Nem uma informação de que o Brasil tem participação residual neste mercado bélico, menos de 0,5 por cento. E claro, nada sobre o estágio de desarmamento unilateral que nos foi imposto pela era da privataria, um verdadeiro serviço prestado às nações que ampliam suas intervenções militares para além fronteiras. E pelas suas imensas riquezas estratégicas, ninguém duvida que o Brasil é alvo. Tal situação começa a ser corrigida com a nova Estratégia Nacional de Defesa que visa recuperar o indispensável em nossa indústria bélica e até mesmo com a compra de equipamentos militares seja da França ou da Rússia, o que é providencial. Fica revelado que quando a mídia colonizada questiona a posição do Brasil em defesa do direito do Irã de avançar em seu desenvolvimento tecnológico soberano para fins pacíficos é porque, no fundo, também questiona o direito brasileiro de alcançar sua independência tecnológica, seja na área nuclear ou em outras. Ou seja, é clara a subordinação editorial desta mídia aos interesses imperiais ditados pelos grandes anunciantes vinculados à fabricação de armas.

É por isso que os maiores absurdos são divulgados de modo distorcido e importantíssimos fatos são sonegados de modo escandaloso. Querem que o Irã se submeta a ditames externos. Sem qualquer comprovação, afirma-se que o Irã está fabricando bombas nucleares, tal como a mídia difundiu quando o Brasil passou a dominar a tecnologia de enriquecimento de urânio. Mas, por que sequer cogita-se uma inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica nas instalações nucleares de Israel? Monumental hipocrisia! Por que sequer cogitam-se sanções a Israel pelo descumprimento, com desprezo, das Resoluções da ONU sobre a Questão Palestina?

Vargas e Mossadeg
Não é simples o desafio de Lula e na altura que escrevemos esta análise ele ainda não chegou pela primeira vez a Teerã, provavelmente a primeira visita de um presidente brasileiro lá. Guardadas as enormes diferenças históricas e culturais entre os dois povos, há elementos comuns. Os mesmos interesses que conspiraram contra o nacionalismo de Vargas e o levaram ao suicídio, também conspiraram para derrubar , em 1953, o governo de Mossadeg, general nacionalista que também como no Brasil havia estatizado o petróleo iraniano. Instalou-se em Teerã, com o apoio o imperialismo petroleiro, uma das mais sanguinárias ditaduras que o mundo conheceu, a do Xá, derrubada apenas em 1979 pela Revolução Iraniana que novamente estatizou o petróleo e outros segmentos importantes da economia, com monumental apoio popular. O curioso é que quando o Xá Reza Pahlev ainda estava no poder sob o controle do imperialismo anglo-saxônico, teve início um programa nuclear iraniano, então interessante para Washington e Londres. Só que esqueceram-se de combinar com as massas revolucionárias iranianas que varreram aquele regime despótico.

Na sua dialética de retirante Lula teve que fortalecer a teimosia de Dona Lindu e enfrentar obstáculos gigantescos, verdadeiras penas de morte do cotidiano, até chegar onde chegou. Tudo poderia parecer inalcançável, tanto agora para muitos parece ser impossível alcançar uma saída para esta crise que ameaça o Irã por meio do diálogo, sem sanções e sem guerra.

O Brasil, muito embora seus governos conservadores, é um país que tem história de posicionamentos independentes contra esta ideologia das sanções. Na década de 70, o Brasil enfrentou o embargo ocidental contra o Iraque que havia acabado de nacionalizar sua economia. Em boa medida o Brasil tem, legitimamente, desobedecido o descabido bloqueio imposto ilegalmente pelos EUA contra Cuba, e, mais que isto, lá tem instalado empresas estatais, realiza obras de infra-estrutura e, sobretudo, cooperando na produção de alimentos e com o envio de toneladas de alimentos ao povo cubano que teve sua economia devastada pela mais recente furacão. O Brasil votou sempre corretamente na ONU em questões emblemáticas como a autodeterminação do Timor Leste, do direito ao Estado Palestino. O Brasil reconheceu e apoiou o governo revolucionário de Agostinho Neto, em Angola, mesmo quando a guerra ainda a intervenção imperial dos EUA-África do Sul continua matando angolanos. O episódio provocou até reclamação do sinistro Kissinger a Geisel de que o Brasil estava fazendo o jogo dos comunistas, posicionando-se ao lado de Cuba. A resposta de Geisel deveria ter servido de lição para o chanceler brasileiro que, com candura, tirou os sapatos sob a ordem de um guardinha de alfândega nos EUA: "Secretário, a política externa brasileira para a Africa nao está em debate com o senhor".

E, mais recentemente, o governo Lula foi contra a intervenção militar no Iraque e está mais que provado que sanções desta natureza não oferecem qualquer solução civilizada, humana, democrática. Prova é que o Prêmio Nobel da Paz, Barak Obama, acaba de enviar mais 30 mil soldados para o Afeganistão, e as encomendas para a indústria bélica nos EUA seguem avançando, seja em mísseis ou em urnas mortuárias para os jovens estadunidenses voltarem, quando nao voltam doidos.....

Cooperação versus sanção
O importante é destacar que o presidente que agora quer convencer o mundo de que precisamos inaugurar uma nova era de diálogo para a solução dos problemas da paz é o mesmo que está buscando desenvolver ações concretas no Brasil e em outras partes para solucionar também os gravíssimos problemas da fome. Claro está que quando se trata de vencer a guerra contra a fome, a grande mídia não tem tanto interesse em dar informações amplas. Mas, quando se trata de temas relacionados à questão bélica - vinculadas aos sórdidos interesses dos anunciantes que fabricam armas - o noticiário se agiganta. Bilhões de dólares logo aparecem para pacotes destinados a salvar bancos, mas jamais aparecem recursos para fazer uma guerra de verdade contra a fome.

Assim, de um lado está a política de cooperação internacional que instala a Embrapa na África bem como em Cuba , Venezuela e Timor Leste para ajudar na produção de alimentos. Até mesmo no Haiti a presença brasileira, reconhecida por Fidel Castro, destaca-se também por implementar obras de infra-estrutura, instalação de hospitais, inclusive com exemplar cooperação entre médicos brasileiros e médicos cubanos, que lá estão às centenas. Ou seja, enquanto o Brasil já começa a exportar também tecnologias para a produção de alimentos pelo mundo, enquanto Cuba exporta médicos e professores, os EUA seguem exportando armas e soldados.

É com esta responsabilidade e com este histórico moral da política externa brasileira que Lula pisa pela primeira vez em solo iraniano para defender, com legitimidade, o fim das políticas de sanções, o direito dos povos a alcançarem soberania tecnológica nuclear para fins pacificos, no que estará defendendo também o inquestionável direito do Brasil em avançar neste desenvolvimento tecnológico, apesar das pressões que já se fazem sentir, como informa o Ministro Sérgio Rezende, da Ciência e Tecnologia, alertando para as dificuldades brasileiras em ter acesso a determinados equipamentos no mercado mundial.

(*) Beto Almeida é jornalista, presidente da TV Cidade Livre de Brasília

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